Bruna Gomes Calda, de sete anos, costuma se refrescar no córrego Rico durante os dias quentes de Paracatu, noroeste de Minas Gerais. “Eu gosto de nadar no rio e pegar pedra no fundo”, diz a menina. O riacho, que corta a cidade ao meio, passa a um par de metros dos fundos de sua casa, no bairro Cidade Nova. Dezenas de residências, a maioria de famílias
A Prefeitura da cidade sabe dos riscos. Mas, segundo moradores, nada fez para alertar a população. “Ninguém nunca me disse nada sobre a possibilidade de contaminação”, diz Queila, que afirma desconhecer o que é arsênio. Em 2010 o Executivo municipal encomendou um estudo ao Centro de Tecnologia Mineral (Cetem) do Governo Federal, com o objetivo de analisar os impactos que a mineração em larga escala provoca na saúde da
O arsênio, que é abundante nas rochas da região (leia abaixo), é liberado no ar e na água quando elas são explodidas para processamento nas instalações da empresa. Em dezembro de 2013 o relatório final do Cetem foi entregue à Prefeitura, e um resumo do documento foi tornado público e colocado na Internet. Nele foi destacado que “mais de 95% da população amostrada apresentou baixos teores de arsênio em urina”.
Uma cópia da íntegra do estudo obtido pelo EL PAÍS com fontes que preferiram o anonimato – o Cetem se negou a fornecer o relatório – mostra um cenário mais preocupante do que fazem crer as 34 linhas do resumo apresentado. O solo ao redor do córrego Rico, onde Bruna costuma brincar, possui em alguns trechos uma concentração de arsênio cinquenta vezes maior do que a permitida pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para uso residencial. Sergio Ulhoa Dani, médico do departamento de
Oncologia Médica do hospital da Universidade de Berna, na Suíça, afirma que as consequências do acúmulo da substância nos seres humanos são devastadoras: “Diversos tipos de câncer, diabetes, problemas na pressão arterial, alterações endocrinológicas e vários problemas respiratórios estão entre as doenças provocadas pelo arsênio no corpo”, afirma. Dani já morou em Paracatu, e há anos acompanha os efeitos da mineração na saúde dos moradores – até hoje examina laudos e exames médicos da população local.
Segundo ele, alguém que entra no córrego se “expõe ao arsênio que está na água, já que a substância pode passar pela pele. Mas a mais perigosa forma de exposição é via oral – muito comum em se tratando de crianças – e respiratória”. Dani, que analisou dezenas de amostras de sangue e urina de pacientes de Paracatu, afirma que a maioria delas possuem arsênio: “Não existe nível seguro dessa substância no corpo. Apenas a presença dela já indica contaminação”. De acordo com o médico, alguns pacientes saíram da cidade há décadas, mas continuam contaminados, já que o “arsênio é liberado no sangue por anos após a exposição, pois se acumula nos ossos.”
Em cinco das oito amostras coletadas pelo Cetem no entorno do rio Rico, a terra não poderia nem mesmo ser usada com finalidades industriais
Em cinco das oito amostras coletadas pelo Cetem no entorno do rio Rico, a terra não poderia nem mesmo ser usada com finalidades industriais – que tolera concentrações maiores de arsênio. O sedimento do fundo do córrego – onde Bruna gosta de pegar seixos no leito – tem, em alguns trechos, uma concentração da substância 252 vezes maior do que o permitido pelo Conama: são 4297,2 miligramas do mineral por quilo, ante os 17 mg/kg permitidos pela legislação em vigor. E a água do rio é imprópria para o consumo humano em diversos pontos analisados – em um deles não poderia ser usada nem mesmo para irrigação ou consumo animal.
Um dos trechos do estudo, publicado apenas em inglês na Internet, conclui que “o arsênio não oferece riscos [de doenças] não-carcinogênicas [diabetes, pressão alta, problemas respiratórios, etc] para adultos, mas as crianças estão em risco. Já os efeitos carcinogênicos [risco de câncer por contaminação], crianças e adultos correm risco”. Mais adiante, o relatório afirma que a principal via de contágio é pela “ingestão de água e inalação de partículas”. O EL PAÍS solicitou diversas vezes sem sucesso entrevistas com o prefeito Olavo Remígio Condé, do PSDB. Posteriormente a assessoria informou que a reportagem seria atendida pelos secretários da Saúde e do Meio-Ambiente de Paracatu, o que também não se concretizou.
Jorêncio Pereira dos Santos, 47, é outro morador que vive às margens do Rico. Sua principal atividade é a coleta de materiais recicláveis na cidade. Aposentado por invalidez após um acidente de trabalho na lavoura, ele depende de doações de alimentos para sobreviver. Sem acesso à água encanada, Santos se vê obrigado a utilizar a água de um dos braços do Rico para tomar banho e cozinhar. “Não tenho água nem luz aqui na minha casa. Se não fosse pela água do rio, eu não teria como fazer”, diz. Ele reclama da poeira e da poluição do ar, mas diz nunca ter ouvido falar do arsênio. Enquanto aponta para dois peixes pendurados em um varal na área externa da casa, ele garante: “Não foram pescados aqui. Se tivessem, eu não comeria”.
Da rocha para a cidade
O geólogo Márcio José dos Santos, mestre em Planejamento e Gestão Ambiental pela Universidade Católica de Brasília, explica como ocorre a liberação do arsênio na mina de Paracatu. “Quando a rocha é explodida com dinamite na lavra [área principal da mineração] o arsênio, que antes estava preso e não oferecia risco para a saúde, é liberado no ar e reage com a água e outras substâncias do ar, tornando-se ativo e perigoso”, diz. Segundo ele, na cidade os ventos sopram do sentido nordeste para o sudeste, o que contribui para que esta poeira venenosa vá da mina para a cidade. Em outra etapa da mineração, os fragmentos de rocha são tratados com produtos químicos, o que libera mais arsênio. “Estes produtos são jogados na barragem de rejeitos, que é uma grande represa altamente tóxica onde todas as ‘sobras’ do processo são armazenadas”, afirma.
A mineradora informou que o durante o processamento do minério ele “é separado usando cianeto e vai para um recipiente próprio com medidas de múltipla proteção”, e que a empresa “segue rigorosos e modernos monitoramentos ambientais que atestam junto as agências reguladoras e órgãos ambientais a eficiência dos seus controles”. Quanto à poeira liberada, a companhia afirma aspergir as vias de acesso com água, para evitar que os grãos se espalhem no ar, e diz aplicar “polímeros, [e promover a] revegetação das áreas de entorno”.
A Kinross construiu duas barragens de rejeitos – restos de produtos químicos e rochas no processo de exploração – em Paracatu, que dominam grande parte do horizonte da cidade. A mais recente, construída em 2006, inundou o vale do Machadinho, que era lar da comunidade quilombola de mesmo nome. De acordo com o Ministério Público Federal, os descendentes de escravos foram pressionados pela mineradora a venderem suas terras. Outro quilombo foi ‘comprado’ para que suas terras fossem usadas na construção da barreira no vale. Hoje os enormes ‘lagos’ tóxicos ocupam uma área de mais de 3.000 hectares, que comportam quase dois bilhões de toneladas de rejeitos. Santos acredita que, como as barragens ficam em uma área de fratura geológica, os resíduos tóxicos se infiltrem no lençol de água subterrâneo.
“Os rejeitos químicos da lama despejada lá reagem com a argila do fundo da barragem, aumentando ainda mais a fratura. Por isso os córregos situados abaixo da barragem estão contaminados”, explica o professor. O relatório do Cetem embasa a conclusão do geólogo: dos 11 rios da cidade analisados, seis apresentaram amostras de água e solo contaminadas com arsênio.
A companhia nega que haja vazamento da barragem e afirma que “controles e monitoramentos garantem a estabilidade da estrutura da barragem e a qualidade da água devolvida ao ambiente”. Na nota enviada à redação, a empresa afirma ainda que “as águas captadas nos barramentos da nossa barragem (…) passam por um sistema de tratamento antes de serem devolvidas aos córregos com qualidade e conformidade com os parâmetros legais”.
Funcionários em risco
Pela cidade é possível encontrar outdoors onde funcionários da Kinross aparecem sorridentes sob a hashtag orgulhodeserkinross. Um trecho do pequeno resumo executivo do relatório do Cetem, no entanto, afirma que “os empregados da mineradora de ouro (…) não participaram da pesquisa [que envolveu coleta de sangue e urina dos moradores], embora tenham sido convidados”. O estudo diz ainda que “as razões para a não participação deles [na pesquisa] são incertas”, mas que “pode-se afirmar que esse grupo é mais vulnerável à exposição ao arsênio do que a população em geral”.
A Kinross informou que “o escopo original do estudo Cetem não incluía os empregados da empresa”. Segundo a nota, a companhia “tem seu próprio programa de monitoramento como parte de seu programa ocupacional de saúde e segurança”, e que os resultados “mostram que todos empregados estão dentro de níveis aceitáveis de exposição”.
Trabalhadores da companhia que não quiseram se identificar disseram que a Kinross colhe sangue e urina dos funcionários a cada três meses. “Eles não informam os resultados, apenas dizem que está tudo bem”, diz um deles, que trabalha na lavra e diz aspirar “muita poeira que sai das rochas” diariamente. Quando perguntado por que não fazia um teste em outro lugar para detectar os níveis de arsênio em seu corpo, o funcionário diz apenas que tem “medo” do que pode descobrir.
A empresa negou que os resultados não sejam apresentados aos funcionários: “Os resultados dos exames realizados são apresentados e ficam disponíveis para nossos empregados e para as autoridades”.
Matéria do jornal El Pais